sábado, 23 de maio de 2009

Porto

O comboio rola já devagar ao aproximar-se da estação, numa sequência de solavancos mais e mais espaçados. Levanta-se do banco onde vinha sentada, apanhando o casaco e a bagagem que trazia. Pela janela sucedem-se as velhas fábricas, muros e armazéns em ruínas que testemunham uma importância que o caminho de ferro teve outrora e que agora lhe era negada.

Após passar um barracão que obstruía a vista, repentinamente, surge-lhe a cidade sob o sol da primavera alegre. O peito encheu-se-lhe de um conforto inesperado. Havia como que um sentimento de pertença, nunca antes manifestado mas que irrompia agora nesta hora de retorno, uma identidade dela com a cidade infundida pela vista do casario na manhã soalheira. Bem bonita que ela era descendo pela encosta com o rio a seus pés.

Recordava-se do Porto como “a cidade”, onde as coisas existiam e aconteciam quando era pequena. Tudo o que era necessário, de maior ou menor importância, era lá. É preciso comprar calçado? Vai-se ao Porto. E roupa para o inverno? Tem que se ir ao Porto. E para o Porto vai o pai trabalhar todos os dias.

Apeavam-se do autocarro na Batalha. A praça, em pedrinha de calcário preto e branco, acolhia o teatro e, defronte, o grande cinema com os cartazes coloridos afixados em tabuínhas perfuradas. Mas os olhos que brilhavam eram para as pombas cinzentas e brancas que ocupavam a praça. E tentar apanhar uma? Não deixavam, aligeiravam o passo na direcção oposta. E se se corria, então uma imensa nuvem de asas levantava-se, dispersando-se por telhados e beirais.

Eram tardes longas, cansativas. Aos pequenos pés de cinco anos as distâncias parciam enormes. As roupas e calçado em Sta. Catarina e Sá da Bandeira, outros têxteis nas Flores, as utilidades em Garrett ou nos Lóios, os livros no Almada ou na Ceuta. Pelo caminho ficava 31 de Janeiro (a que toda a gente chama ainda Sto. António) e os LPs chamativos nas montras. Percorria-se a baixa com grande rapidez, tentando evitar os encontrões em estreitos passeios travados por fortes lancis de granito já muito arredondados pelo uso. Não raras vezes serpenteava-se por entre um mosaico de automóveis. Nas lojas, o infindável escolhe-tira-experimenta-calça-despe-troca-veste-descalça-escolhe ocupavam tanto o tempo como a paciência.

- “Esse não, que não vai para casa.”

Pena! Era mesmo naquele autocarro de dois andares que lhe apetecia regressar. Sonhava poder subir ao convés superior e observar o mundo lá fora lá do alto. Ao fim da tarde esperava-se o transporte de regresso junto à Arcádia, já depois de o copo de leite quente e a bola-de-berlim terem confortado o corpo e apaziguado algum cansaço.

Só bastantes anos mais tarde, quando pôde percorrer as ruas por sua conta, é que viu a cidade com outros olhos. Observou então as casas e prédios, tão diferentes e iguais com as suas fachadas estreitas de grossas cantarias. Topou as clarabóias a mirá-la nos telhados. Apreciou o rio dourado ao pôr-do-sol de Estio com a ponte e o seu arco em contraluz. Escutou os sinos dos Clérigos e as vendedeiras do Bolhão. Viu os Aliados com os seus prédios decorados e árvores despidas na envolvência dum pregão do vendedor de castanhas no dia frio de Novembro, e concluiu até que o Porto precisava por vezes de um poucochinho de chuva para ser o Porto em toda a sua respeitável vetustez.

O comboio parou finalmente na estação. Nessa manhã, ao pousar o pé na gare, sentiu-se um bocadinho mais feliz.

Sem comentários: