domingo, 23 de agosto de 2009

Festa na Aldeia



Com o corpo estendido sobre a cama, na penumbra do quarto, procurava escapar à abafada tarde de Agosto que lá fora incitava o mercúrio a saltar dos termómetros. Pelas frinchas da veneziana chegavam-lhe assim coados a luz da tarde e o repique dos sinos num contínuo.


-- A Sonata das Três Notas!... - assim baptizou num resmungo a paupérrima melodia num misto de aborrecimento e mordacidade.


No Minho, em Agosto, é inevitável a festa popular todos os fins-de-semana, ali ou nalguma freguesia vizinha, e o despique nunca fica por mãos alheias: as gentes ufanam-se disputando o maior tapete de flores ou a maior procissão.


-- Este ano vem um fogueteiro de Darque - vangloriava-se o Baptista da comissão de festas - e só de fogo de artifício são oitenta contos!


Para ela, ao invés de alegria, estas festas traziam-lhe paradoxalmente aborrecimento. Pelo barulho, pelo ruído até altas horas da noite e da salva de tiros às seis da matina, pela disputa vã entre as gentes vendo quem enfeita melhor o andor, pelo orgulho boçal do Baptista sobre a quantia despendida, pelo jeito que fariam aqueles oitenta contos distribuídos pela viúva do Pardelhas com três filhos e mais um a caminho ou pelo Ti Zé da Fonte, homem de muito trabalho mas a quem a vida sempre castigou.


Mas, para além disto, os sons da festa despertavam no seu peito angústia. Inexplicável, irracional, mas certamente angústia.


O toque incessante dos sinos trazia-lhe à ideia aflições, o badalar repetido de um funeral ou do toque a rebate por causa de um fogo ou uma guerra. Aquela "Sonata das Três Notas" em contínuo trazia-lhe esse sentimento misto de tristeza e aflição e torturava-a a cada volta, uma e outra vez, seculo seculorum. Desejava que se calassem de vez ou, pelo menos, que se limitassem a tocar as horas e as meias como de hábito e preceito.


Esta perturbação, que tentava espantar a custo, mantinha-a imóvel no quarto. Logo a ela!, mulher de trabalho e desembaraço, a quem faz confusão estar quieta. Logo a ela!, que nada a atrapalha, e ao fim e ao cabo uma festa de aldeia prega-lhe um desarranjo de nervos como não lembra. Ele há coisas que uma pessoa não entende...


Ao menos se ainda fossem só os sinos... Mas não! O rufar compassado dos bombos e tambores da procissão dava continuidade à angústia na sua toada marcial. Aquela coluna humana, movendo-se a toque de caixa pelas ruas, evocava um exército e, mais uma vez, a guerra. Nunca conhecera a guerra, porém.


-- Nunca!, e que Deus seja louvado e assim me conserve! - pensava.


A fanfarra, desta feita vinda de São Gens e com maestro diplomado e tudo, não mitigavam o tom triste do todo. Os músicos, escorrendo bagas de suor sob o sol abrasador do Estio dentro das suas fardas engomadas, esforçavam-se por retirar as notas correctas dos metais de sopro reluzentes. O lento cortejo, de uniformes em azul-marinho e branco, ganhava então ares de exéquias com honras militares.


Nisto matutava, prostrada na cama sobre a manta branca de algodão e a colcha florida dobrada aos pés, quando foi arrancada aos seus pensamentos pelo som de uns passos no soalho, pequeninos e céleres, acompanhados de uma vozinha infantil:


-- Mãe, quero doces! Daqueles bons, da festa!


Acalmou e sorriu ao entusiasmo daqueles olhos brilhantes. Como por magia desapareceram as fardas, os pelotões, as marchas fúnebres e os fogos, calaram-se os tambores, os rufos, as trompas e trompetes, aliviou-se a angústia e o temor dentro do peito, e até a "Sonata das Três Notas" pareceu desvanecer-se no éter.


Doces, pois então. Ela bem sabia de que doces gostavam aqueles cabelos morenos: daqueles polvilhados de côco e recheados com um cubo de marmelada, vendidos pela senhora sorridente de Serradelo.






Imagem: a "Sonata das Três Notas", como já devem ter adivinhado. :)

8 comentários:

Sininho disse...

pois é amigo 'blogosferico' agosto: mês de emigrantes, de calor(ou não) e de festas de arraial :S
e festa de arraial sem frango assado com batata frita de pacote e salada de tomate em pratos e talheres de plastico (que a ASAE anda aí) não é festa de arraial
beijos

Anónimo disse...

Conto delicioso, mesmo que me deixando à flor-da-pele na expectativa de algo. Ainda bem que veio o menino! :)

beijinhos

R. disse...

@Sininho:

Ah pois é!, há coisas que não mudam. :)

R.

R. disse...

@A Senhora:

É um menino? De certeza? ;)

R.

mfc disse...

Que delícia!
Que bem contado!
E aquele final que tudo muda, em que se sobrepõem as memórias boas... afinal as que permanecem!

Anónimo disse...

Estou tão acostumada que sejam meninos que seria difícil imaginar outra coisa. :)))

beijinhos

R. disse...

@mfc:

Muito obrigado pelo elogio.

Estou a imaginar este conto ilustrado por uma das suas belíssimas fotografias de pormenor: talvez um arco de rua em dia de festa ou a cantaria em granito grosseiramente aparelhado de uma casa minhota. :)


R.

R. disse...

@A Senhora:

Foi de propósito mesmo. :) Tento deixar sempre uma margem muito muito larga para a imaginação de quem lê. A criança, pedra de fecho desta história, é quem nós quisermos. Naturalmente surge no nosso pensamento quem está mais próximo do nosso coração. :)

R.